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                                                                                 Cultura & Lazer .43
                                                                                 Cultura & Lazer
            A Espingarda Feiticeira “
                                                                                      UMA VISÃO DA HISTÓRIA







            da modernidade japonesa está uma rudimentar                ... na base da modernidade
            espingarda de mecha do princípio do século XVI,
            que chegou ao arquipélago por mãos portuguesas      japonesa está uma rudimentar
            e está relatada por Fernão Mendes Pinto na sua      espingarda de mecha do
            obra Peregrinação.                                  princípio do século XVI, que

                                                                chegou ao arquipélago por mãos

               O Império a Oriente marcou a alma portugue-      portuguesas...”
            sa, época áurea que revelou ao mundo um Portu-
            gal de referência e global: instalado de Mombaça                                 [TCor Inf (Ref) Abílio Lousada]
            a Goa, de Ormuz a Malaca, de Ceilão a Macau,
            Portugal dominava a costa do Malabar, controla-
            va o golfo Pérsico, vigiava o mar Vermelho, deti-               uma tempestade os arrastar, quando navegavam
            nha as chaves de entrada no Pacífico, passou pela               em direção à China: depois do naufrágio, os três
            Austrália, comerciou com o Japão e relacionou-se                “desembarcaram na ilha de Tanixumá  [Tane-
            com a China. No século XVI, Portugal influencia-                gashima], onde o nautaquim [príncipe], senhor
            va o mar, servia à Europa de celeiro comercial                  da ilha se não cansava de fazer perguntas. Nós
            das especiarias e evangelizava os gentios. Lis-                 gastávamos o tempo em pescar e caçar, e ver tem-
            boa fervilhava de movimento cosmopolita. Um                     plos dos seus pagodes, nos quais os bonzos [sa-
            status que começou a definhar a partir de finais                cerdotes] nos faziam muito gasalho, porque toda
            do século, quando a presença das companhias co-                 esta gente do Japão é muito bem inclinada e con-
            merciais inglesas e holandesas acabaram com o                   versável. No meio desta nossa ociosidade, Diogo
            monopólio indiano.                                              Zeimoto tomava alguas vezes por passatempo
               A vida de Fernão Mendes Pinto, que nasceu                    tirar com ua espingarda, a que era muito inclina-
            por volta de 1510 e morreu em 1583, atravessa a                 do e na qual era assaz destro. E acertando um dia
            ascensão, apogeu e declínio do Império Portu-                   de ir onde havia grande soma de aves de toda a
            guês do Oriente, ou seja, como ele relata na Pere-              sorte, matou com a munição uas vinte e seis mar-
            grinação, sentiu e viveu as grandezas e misérias                recas [patos selvagens]. Os japões, vendo aquele
            do Portugal Imperial, desde D. Manuel I e D. João               novo modo de tiros, deram rebate disso ao nauta-
            III, a D. Sebastião, D. Henrique e Filipe I (II de              quim o qual, espantado desta novidade, mandou
            Espanha). À nossa frente temos um homem tão                     logo chamar o Zeimoto e quando o viu vir com
            interessante quão  contraditório, verificável nas               a espingarda às costas e dous chins carregados
            suas atividades mundanas plenas de metamor-                     de caça, fez disso tamanho caso, que em todas
            fose: homem de corte, diplomata e embaixador;                   as cousas se lhe enxergava o gosto do que via,
            negociante e mercador; curandeiro, mendigo e                    porque, como até então naquela terra nunca se
            religioso; soldado, espião, pirata e cativo. E um               tinha visto tiro de fogo, não sabiam determinar
            homem do mar e escritor, que nos deu conheci-                   c’o que aquilo era, nem entendiam o segredo da
            mento em detalhe de longínquos e desconheci-                    pólvora, e assentaram todos que era feitiçaria. O
            dos lugares, como a Índia, a China, a Birmânia,                 Zeimoto, vendo-os tão pasmados e o nautaquim
            o Sião e o Japão.                                               tão contente, fez perante eles três tiros em que
               Relativamente ao Japão, o local que interessa                matou um milhano e duas rolas”. O relato conti-
            para a  narrativa, até 1558 fez  quatro viagens ao              nua dando conta da alta estima que o nautaquim
            território. De acordo com a Peregrinação, Fernão                passou a nutrir pelos três portugueses, a quem
            Mendes Pinto, Cristóvão Borralho e Diogo Zei-                   cobriu de honrarias. Diogo Zeimoto decidiu en-
            moto chegaram ao Japão em 1543(?), depois de                    tão retribuir, oferecendo-lhe a espingarda, “um



                                                                                                              JE
                                                                                                              JE  698– ABR20 698– ABR20
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