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4. Recrutamento Militar no Século XVI Português: A Inconsistência de um Sistema (1495-1578)
infligem derrotas à cavalaria, arma praticamente invencível durante 700 anos
nos campos de batalha europeus. Infantes munidos de besta, arma terrífica que
chegou a ser proibida pelo segundo Concílio de Latrão em 1139 como sendo um
instrumento diabólico, impróprio para cristãos, não se limitavam a derrubar, com
grande precisão e à distância, cavaleiros equipados com armadura; derrotavam,
a pouco e pouco, toda uma maneira de ser na guerra, toda uma forma de estar
na sociedade. A peonagem vilã, desprovida de sangue e linhagem, assume novo
poder no campo de batalha. Assim o mostrou em Morgarten, 1315, quando a
infantaria suíça, munida de alabardas e piques, formados em quadrados, derrotou
o muito mais numeroso e profissional exército dos Habsburgo, comandado por
Leopoldo I, duque da Áustria.
O terramoto social e económico que a Peste Negra (1348-1350) causou
em toda a sociedade cristã europeia estará na origem, ainda que remota, das
grandes transformações do Quattrocento latino. A recuperação e exaltação dos
valores clássicos (aliás começada na Península Ibérica quase duzentos anos
antes com a reintrodução dos escritos gregos e romanos pela mão de Averróis
e os seus comentários a Platão e Aristóteles), implicava a emulação das virtudes
militares da Roma antiga, do valor da organização republicana e imperial que
soubera criar e manter um império por quase mil e quinhentos anos.
O Renascimento, não o é apenas das letras, das ciências, das artes e do
entendimento e situação do Homem no mundo. É também o renascimento
das técnicas e tácticas guerreiras que jogam no anonimato da massa e da sua
força a razão de ser do poder dos exércitos. O cavaleiro/cavalheiro começa
a encontrar mais facilmente lugar nas cortes que nos campos de batalha. E
a esta dura realidade do choque cultural que representa, não conseguem
fugir todos os jovens aspirantes à glória própria da casta que dominou as
sociedades europeias. Se a Guerra dos Cem Anos (1337-1453) revelou ao
mundo o poder das novas armas de fogo, ligeiras e pesadas, as chamadas
Guerras de Itália (1494-1559) revolucionaram a prática e a própria concepção
do uso da violência organizada. Período tão profícuo que mereceu o epíteto
de Revolução Militar, nome dado por certa historiografia anglo-saxónica que,
desde 1955, assim determinou designar este período . Debate extemporâneo,
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Cf. PARKER, Geoffrey – «The “military revolution, 1560-1660” – A Myth?». In ROGERS, Clifford J.
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(Ed.). The Military Revolution Debate – Readings on the Military Transformation of Early Modern
Europe. Boulder: Westview Press, 1995.
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